Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
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Vampira
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Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Excelente capítulo, Aracnos. Muito boa a saga de Noriel na tentativa de encontrar Profaniel nas profundezas do abismo. Um capítulo cheio de referências, como a visão do inferno semelhante ao da Divina Comédia, as figuras históricas presas cumprindo diferentes penas. Eu achei um barato.
Parabéns, cara!
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Mr. Black-
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Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Opa, desculpa a demora pra responder seu comentário Black!
Obrigado pela leitura. Esse capítulo foi muito baseado na Divina Comédia... não podia ser de outro jeito.
Segue abaixo o capítulo 4!
Obrigado pela leitura. Esse capítulo foi muito baseado na Divina Comédia... não podia ser de outro jeito.
Segue abaixo o capítulo 4!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Por: Anderson Oliveira
04. O Evangelho de Profany, parte 4.
“If God is against us, who will be for us?”
O cargueiro segue navegando na escuridão que apenas é cortada pelo clarão de raios e trovões. O mar se agita. Uma tormenta se aproxima. O timoneiro, um nefilim de aparência jovial e ao mesmo tempo castigada, estranha tal mudança climática. Ora o mar estava calmo e há muito tempo não se via sinais de chuva. Há algo errado. E ele sente sua espinha congelar quando vê diante de si um raio de puro vermelho cortar o céu. Sim, há algo muito errado acontecendo. E a origem disso está em uma das cabines abaixo.
Lorde Gabriel dá ordens a seus assistentes e este tiram o corpo de Noriel da banheira e o deixam sob um cobertor no chão. Do abdome para baixo ele é coberto com outro cobertor. Um assistente traz um velho desfibrilador, achado entre as tranqueiras desse sucateado barco. Gabriel toma o aparelho nas mãos e o liga – conhecendo esta ciência de tanto observar os humanos.
Então, contra o peito gélido de Noriel, Lorde Gabriel dispara uma carga do equipamento. Noriel se contorce e seu peito pula, mas logo caí inerte novamente. Gabriel prepara outra dose, agora mais forte. E aplica sem pestanejar. Outra vez o corpo de Noriel salta com o reflexo, mas com a mão em seu pescoço, Gabriel constata que ainda não há reação.
— Vamos, meu jovem. — sussurra o Lorde nefilim ao aplicar a terceira descarga. Por dentro do corpo desfalecido de Noriel, seu coração recebe a desfibrilação, se expande e bombeia sangue frio para dentro de suas válvulas. A reação faz todo seu corpo estremecer. — Volte para nós, Noriel... — outra carga do desfibrilador é aplicada.
No Abismo, Noriel sente a dor invadir seu peito. Uma dor que consegue ser maior que a do fogo e da lava, das pedras escaldantes e o ar carregado de enxofre. No desespero, enquanto Profaniel jaz diante de si envolto por correntes e fios, Noriel se atira contra ele, conseguido agarrar apenas a corrente que envolve seu braço direito. Sem ter onde se segurar, Noriel cai mergulhado na lava fervente. Seu espírito arde em agonia sem igual. Mas sua mão não larga a corrente, e conseguindo ver – ou imaginando que vê – o rosto de Profaniel confuso e assustado, Noriel lhe diz:
— Profaniel... venha...
E uma nova e mais intensa dor toma seu peito. Tamanha é sua força que Noriel perde os sentidos e quando o recupera está fora daquela lava, num imenso vazio branco, com Profaniel puxado por seu braço, enquanto parece voar em direção a algo. Agora não há mais qualquer dor, seja pelo fogo ou a estranha sensação no peito. Não há nem frio nem calor. E poderia dizer que não há nada, até que Noriel sente algo que há muito tempo não sentia.
E nem qualquer outra criatura deve ter sentido isso há muito tempo. Ao longe, quase despercebido... A presença de algo maior, que arrebata a mente de Noriel e, a sua frente, vê surgir o que lhe parece um túnel. Um túnel escuro e nada hospitaleiro. Porém ao passo que se aproxima dele, Noriel sente a presença cada vez maior. E ele ouve algumas palavras. Palavras dispersas, sem sentido, que assim que se aproxima do túnel vão ganhando forma e significado. Logo ele percebe que essa força está falando com ele.
Que essa força é a presença de Deus.
E num turbilhão de emoções e ideias, Noriel ouve as palavras de Deus. E vê tudo o que aconteceu na amplitude do Universo. Vê, como se fosse um anjo novamente. Talvez até algo maior. E sua mente é bombardeada com informações. O túnel bem a sua frente já o envolvendo. É quando Noriel tem a resposta da pergunta mais feita na Terra nos últimos anos. Onde está Deus?
Noriel agora sabe.
Seus olhos se abrem. É como despertar de um sono profundo. Uma claridade fere sua retina e ele mal consegue distinguir os vultos que dançam diante dele. Sente seu corpo frio e molhado se aquecer. Ar quente entra ferindo seus pulmões. Ele tosse e coágulos de sangue são cuspidos. Seus olhos ainda doem. Na tentativa de focar a visão, piscando várias vezes, Noriel consegue identificar um dos vultos que se apresentam diante dele. A pessoa se aproxima de seu rosto e ele vê a face assustadora de Lorde Gabriel.
— Bom trabalho, rapaz. — diz Gabriel apertando seu ombro. Noriel parece não entender. É quando vê Gabriel dirigir o olhar para algo a sua frente. Noriel se esforça para dobrar o pescoço e poder ver o que é. Joga seu ombro esquerdo para cima e se vira ainda deitado, querendo se levantar mas ainda sem força, para ver, assombrado como todos na sala, o que está parado ao fundo da mesma.
Entre as velas que queimam fazendo as sombras dançarem pelas paredes como almas penadas que com ele fugiram do inferno. Dentro do círculo desenhado com giz no chão, onde fora deixada sua velha camisa, resquício de sua vida humana na Terra. Nu, com o corpo, apesar de aparentemente molhado. soltando uma fumaça que sobe e some no ar. Agachado no meio do círculo como um animal arisco pego na caça frente aos seus caçadores. Seus olhos verdes parecem cinzentos refletindo medo e rancor em sua alma. Seu rosto é marcado pelo sofrimento, e sua boca deformada faz muitos virarem a face.
Profaniel está na Terra novamente.
Noriel vê seu amigo naquela situação, e parece que só agora se lembra do que aconteceu. Vê também quando Gabriel toma a frente e confronta Profaniel, pegando das mãos de um dos seus assistentes um embolado de roupas e jogando aos pés dele.
— Antes de qualquer coisa, vista-se. — diz Gabriel em tom de ultimato. Profaniel o olha com um olhar que faria qualquer um ali tremer, menos Gabriel.
E então Profaniel pega uma calça e a veste, sem se levantar. Afivela depois um cinto. E também ainda no chão, calça um par de botas. São roupas antigas, quase da época em que Profaniel era humano. Não veste camisa, deixando amostra no peito a cruz de duas hastes, com um tipo de cristal em cada ponta, seis ao todo. Em seus braços há uma cruz semelhante, incrustada na carne, formada por duas cruzes de metal sobrepostas, com os cristais nas pontas, menos da ponta de baixo, que fica no seu pulso, onde há uma chaga que, de forma sobrenatural, atravessa seu pulso como que ali houvesse transpassado algo.
— Profaniel. — começa a dizer Lorde Gabriel. — Caso não esteja me reconhecendo, eu sou Gabriel, teu príncipe-arcanjo no coro dos anjos divinos. Sabes que não sou de rodeios, então vou direto ao assunto. Outrora eu saudava aos mortais com palavras como “Não temas, o Senhor é convosco”. Hoje o saúdo dizendo: “Tenhas medo, pois o Senhor não é mais conosco”. — os presentes na sala engoliram em seco. Profaniel apenas piscou os olhos. — Este é o ano terrestre de 2028, caso ainda pense que está na sua bucólica vida de duzentos anos atrás. O pior aconteceu em 2012 e Satanás invadiu o Reino dos Céus, transformou todos os anjos em mortais, e os que não foram mortos pelos demônios se viram obrigados a rastejar pela Terra como vermes.
Profaniel olha ao redor. Fita todos os presentes naquela sala. Todos anjos transformados em mortais. Sente o gosto da ironia. Pois ele se tornou mortal por vontade própria, o que acarretou sua condenação ao Abismo. Agora todos eles foram sentenciados a sentirem o gosto da terra. Não pode deixar de sorrir no fundo da alma. É quando fita, deitado no chão, envolto em um cobertor e ainda tremendo, aquele que um dia chamou de amigo. Noriel. Seu rosto está abatido. Envelhecido. Marcado por anos de sofrimento. Um sofrimento que não escolheu sentir, mas foi forçado. Profaniel então sente vergonha.
— Dividimos o mundo com os homens. — continua Gabriel. — Por comida, terra e racismo entramos em guerra. Uma guerra que não acabou e nem acabará tão cedo. Pois agora o homem sabe que os anjos de Deus, que deviam protegê-lo, estão derrotados. E sabe que Deus não mais se ouve nos Céus. Em seu lugar, Satanás está sentado. Toda a crueldade que havia no homem, escondida no íntimo de sua alma, está livre. Mas não serei hipócrita e dizer que todos os homens são maus. Existem os que ainda seguem a senda reta, mas agora estes vivem com medo. E há também os de nós, que fomos rotulados de Nefilim, que se entregaram a maldade. Lúcifer brinca com nossos destinos. Ergueu sete impérios para que homens e nefilim o adorem em troca de paz e conforto.
Um vento estranho ameaça apagar as velas, mas ninguém dá conta disso. Nem ao balanço do barco e sua inclinação percebida na água da banheira que transborda. Profaniel tenta, involuntariamente, entender e imaginar o cenário descrito por Gabriel. Seria possível tal sorte? Mas Gabriel não lhe dá tempo de meditar e continua seu relato:
— Então, Profaniel, saiba que por isso o buscamos do Inferno. Você foi poupado da trama de Lúcifer. Esquecido no Abismo, sobrou em ti um último resquício da força divina. Ainda que não sejas nem anjo, nem mortal. Só você tem a força para combater Lúcifer e, quem sabe, devolver tudo ao seu devido lugar. — Gabriel faz silêncio agora, esperando do outro alguma resposta. Mas só tem um olhar de desprezo. Olhar que logo ganha voz nas seguintes palavras ditas por Profaniel:
— Vocês... vocês me condenaram ao Abismo. Maldito sejas tu Gabriel! E malditos sejam Metraton, Haziel, Auriel, Uriel, Raphael, Camael, Haniel e Miguel--
— Miguel está morto. — interrompe Gabriel com uma vaga tristeza no olhar. Profaniel arregala os olhos e se põe em silêncio quando o outro diz: — Miguel foi morto por Lúcifer em pessoa. Sua espada, a mesma que baniu o diabo nos primórdios, se tornou material e caiu na Terra. Com ela, Lúcifer poderá ser destruído. Mas mãos mortais não podem tocá-la. E, por sorte, nem os demônios. Por isso, só você poderá erguê-la.
Profaniel parece meditar sobre o assunto. Seu olho corre pela sala e ele não pode deixar de fitar Noriel, seu amigo, que transmite confiança em seu julgamento. Porém sua carne ainda sente a dor dos séculos no Inferno. Séculos? É estranho agora perceber que o tempo passou. Será difícil assimilar tudo. Kate... como ele sente sua falta. O doce perfume de sua pele. Profaniel guarda em sua alma que foram eles, Gabriel e os outros arcanjos, que a tiraram dele. E tal dor é maior que tudo. Maior que o amor ou a amizade.
— E se eu não quiser ajudá-lo? — pergunta. Gabriel levanta a sobrancelha deixando mais sinistra sua órbita vazia e responde:
— Isto não foi um pedido. Foi uma ordem.
— DESGRAÇADO!! — brada Profaniel com tamanha força que nem ele acreditasse em ter. Gabriel não se assusta. Apenas dá de ombros e gira nos calcanhares a lentos passos. Profaniel cerra os punhos em crescente ira e se atira contra o Lorde Nefilim como uma fera acuada. — Não me dê as costas!! — porém sua fúria é contida por uma barreira invisível, estando há menos de um metro de Gabriel. Todos se assustam com a cena. E leva alguns instantes até perceberem o que aconteceu.
— É claro que eu previa isso. — diz Gabriel quando todos veem o círculo místico desenhado no chão abaixo de Profaniel. Não era um encanto para trazê-lo do Inferno, mas para prendê-lo na Terra.
Percebendo isso, Profaniel recua da pose de ataque e volta a ficar acocorado no chão, maldizendo-se por dentro por não suspeitar do truque. Mas que seja. Isso não o obrigaria seguir as ordens de Gabriel. E Gabriel sabia disso. Talvez sua abordagem tenha sido incorreta e via que talvez toda essa esperança tenha sido em vão. Em silêncio ele ordena que seus assistentes tragam as roupas de Noriel, que já parece mais forte. Noriel por sua vez se veste, e enquanto faz, receando se essa é a melhor hora, diz a Gabriel:
— Lorde Gabriel... talvez ainda haja uma forma... — Gabriel o olha com certa surpresa no semblante. Noriel continua: — Quando rompia a barreira entre o mundo dos mortos e o dos vivos, minha mente se abriu e eu percebi todas as coisas. Foram poucos instantes onde me pareceu ouvir novamente a voz do Criador. E Ele me disse que--
— Basta! — de súbito, Gabriel se atira contra Noriel e tapa sua boca com força. — Não diga mais nada! A marca que fiz em sua nuca o protegeu no mundo espiritual e o protege neste mundo. Então tudo o que descobriu está seguro dentro da sua cabeça. Se falar tal segredo, os demônios ouvirão e, seja o que for, estará perdido, pois eles chegarão mais rápidos do que nós. Então não fale, não escreva, não faça sinais... Eles irão saber o que é. Promete?! — tentando balançar a cabeça e com medo no olhar, Noriel faz que sim. Então lentamente Gabriel o solta.
— O que sei é a salvação para nossa aflição. — diz Noriel em tom de súplica.
— Por isso. Se os demônios ouvirem, estará arruinada nossa salvação. Com a marca em sua nuca, eles não poderão ler sua mente, e o segredo estará a salvo. Caso for, pensaremos em um jeito... — Gabriel olha com o canto de seu olho bom e percebe o movimento irregular do fogo das velas. Jura que pode ouvir ruídos de pragas cercando aquela cabine. Nota que Haziel, a capitã do barco, também percebe. — Eles estão aqui.
Todos então sentem o vento frio encher de medo suas espinhas e a luz das velas se apagarem de uma vez só e depois se acenderem com violência. Quem tem alguma arma para sacar assim o faz. Noriel, que mal acabara de se vestir, se apoia em seu cajado e recua para perto de Profaniel. Este continua agachado e confuso, não entendo o que acontece. É quando todos ouvem o som de garras arranharem as paredes de metal. Alguns ouvem guinchos como de rapinas. Gabriel tira do bolso da calça um colar e o coloca no pescoço.
Um baque surdo é ouvido do lado de fora. Como um peso jogado à porta. Haziel faz seu facão correr da bainha até o batente da porta e, com uma semi automática na outra mão, encosta seu ouvido no metal e tenta ouvir o que puder. Seu lindo rosto se faz em treva quando percebe o grito do timoneiro e ouve o que julga ser seus ossos sendo moídos.
— Eles não passarão pelo sal. — diz um tripulante. A capitã Haziel faz um gesto para ele fazer silêncio. Apesar de ser verdade o que ele diz. Mas seja por superstição ou cautela, nunca se poderia dizer isso durante um ataque.
Profaniel vê tudo ainda muito confuso. Noriel ao seu lado queria lhe orientar, mas sabe que agora não era o momento. Gabriel vai até a porta e junto com Haziel guarda seus flancos. Ouvem agora o som de passos, ou algo tentando imitar o som de passos. Até que alguém se aproxima da porta. Os dois lordes sentem o frio que dela emana, assim como o fedor que sobe. Ouve-se ainda um estranho pigarrear antes da criatura dizer, com voz humana e limpa, quase hipnótica:
— Abram a porta. — não houve resposta. Um suor brotou na testa manchada de Gabriel enquanto seu dedo se firma no gatilho do seu AK-47. Então a voz tornou a falar, no mesmo tom hipnótico, só que agora mais severamente: — Abram essa porta. Só queremos o condenado. Não iremos machucá-los.
Profaniel soube na hora que falavam dele. Talvez nessa hora tenha entendido o que acontecia. Por ímpeto deu um passo, mas a magia do círculo ainda o prendia.
— Pela última vez: abram essa maldita porta. — diz novamente a voz, agora desprovida de qualquer humanidade que tentava simular.
— Não abriremos, — diz Gabriel. — ele é um dos nossos, e conosco ficará.
— Então sabes como termina, velho Gabriel.
— Tente a sorte, imundo. — frente ao desafio, o demônio deu um grito que obrigou a todos na sala a tapar seus ouvidos. Depois disso todos ouviram fortes trovões e com eles o bater de asas de um revoar de morcegos. — Essa não! — exclamou Gabriel ao olhar para o alto e ver uma ruptura crescente se formar no teto da cabine.
Pela fresta um vento gélido entra em rodopios e nele se percebe partículas como cinzas. A maioria das velas se apaga e os nefilins assistentes apontam suas armas tentando mirar no redemoinho em formação. Então o redemoinho desce até o solo e forma sobre a banheira no centro da sala, usando sua água como condutor das energias de que precisa para assumir forma visível. E assim o faz, na imagem de um homem forte, de cabelos pretos e barba curta, vestido de armadura como um soldado romano, apesar de usar coturnos de soldado moderno. Tendo em vez de asas uma capa preta a cair pelo ombro direito, com a mão pousada sobre a espada na bainha.
Levitando sem tocar na água, ele olhou tudo ao redor, lançando nada mais do que desprezo para Gabriel e Haziel, menos que isso para os demais nefilins, voltando toda sua atenção à frágil figura tenebrosa de Profaniel. Profaniel lhe olhou de volta, e tentou reconhecer aquele rosto, mas não conseguiu. O demônio fez que ia ao seu encontro, mas um tiro em suas costas o deteve. Um cartucho de sal, que seria suficiente para acabar com um Afrit, como os nefilins chamavam os demônios inferiores mais fracos, de nada adiantou contra aquele. Ele se vira para seu agressor, um dos assistentes de Gabriel, e com algum hipnotismo, levando a perder a respiração, diz:
— Tolo. Arma mortal alguma pode me ferir, pois fui eu quem as concebi. — tendo dito isso, apenas com sua vontade ele joga o nefilim contra a parede oposta.
— Azazyel. — diz Gabriel com repúdio.
— Vejo que me reconheceu, velho inválido.
— Veio sozinho? — pergunta Gabriel não dando atenção ao insulto.
— Não julguei que demandaria de mais do que eu para dar conta de um bando de mortais e de um estranho “Nofilim” recém tirado do Inferno. — por Nofilim ele chama Profaniel, pois ao contrário dos Nefilim, que foram jogados na terra, Profaniel se atirou por vontade própria. Azazyel então torna a fitar Profaniel. — Em verdade, morrerás antes que possa ver o amanhecer.
— Não existe verdade vinda da boca de um demônio! — protesta Noriel, até então contido.
— Cala-te, nefilim. Tua vez não tardará. E cuidarei para que ninguém o traga de volta da morte outra vez.
— Balela. — Noriel olha rapidamente para Profaniel e também para Gabriel. Nesse rápido intervalo percebeu a intenção de Azazyel sacar sua espada. Com seu pé, molhado pela água da banheira que por vezes trasbordara, ele fez uma brecha no círculo que prende Profaniel. Azazyel empunha sua arma e vai contra Profaniel. Este se protege com os braços, por puro reflexo, e todos se assombram quando a espada do demônio se parte em dezenas de pedaços ao tocar a cruz no antebraço do outro.
— Não é possível! — exclama num tom baixo Azazyel. É então que nota, tanto no peito como nos braços de Profaniel, aquela cruz que desde os primórdios dos tempos é chamada de “O Selo”. — Ele possui o Selo...
— Sim. — diz Gabriel se aproximando. — O sinal de Caim. Quem possuir tal marca, não deve ser molestado, assim decretou o Senhor. E seu decreto ainda vigora, mesmo que o usurpador tome seu assento.
E Azazyel dobra o joelho diante de Profaniel. Não para reverenciá-lo ou coisa do tipo, mas por simples e pura desolação. Quando olhou para o rosto de Profaniel, o espírito imundo viu, em meio ao seu semblante de ódio, o resplandecer de uma luz divina formar um arco de santidade em sua cabeça. Profaniel, em verdade, ainda tem o poder de Deus.
— Você é uma ameaça! — diz Azazyel retomando a ira no olhar e se precipitando contra o “nofilim”. Profaniel estende a mão para se proteger e nisso encontra o pescoço do demônio. Azazyel sente, e Profaniel sabe disso e talvez o usando como bode expiatório, expurga todo seu ódio latente contra os anjos no demônio. Azazyel agoniza como um mortal, mas não grita ou pede piedade. E nem Profaniel pensaria em dá-la. Por fim, Profaniel o solta sobre o chão e o prazer daquilo o toma por algum momento.
— Profaniel. — chama-lhe a atenção Noriel que depois diz: — Está livre. Saia daqui. — Profaniel olhou para baixo e viu que o círculo está rompido. Viu também Gabriel lhe fitando, vindo em sua direção. A vontade de dar a ele o que merece é crescente, mas o olhar piedoso de Noriel lhe mostrou que deve fazer o contrário. — Fuja!
Mas para onde ir? O que há nesse mundo que sirva de lugar para alguém como Profaniel? Se fosse sua terra de outrora, aquele mundo em que viveu. Onde amou e foi amado. Kate, como ele queria ver Kate novamente. Sentiu nessa hora que Noriel o tocou no ombro, como que para apressá-lo, visto que Gabriel e os outros se aproximavam, e mesmo Azazyel já voltava a si. Realmente ele teria que sair dali. É quando o desejo de estar perto de Kate aumenta e em sua memória vêm as imagens de Londres. É pra onde ele quer ir.
E Gabriel e os outros veem quando Profaniel, junto com Noriel, some de sua vista. Verdadeiramente ainda lhe resta a centelha divina para poder usar tais poderes. Mas ainda está lá Azazyel, e estando perto o bastante, Gabriel o empurra com o pé pra dentro do círculo no chão e conserta sua falha com giz. Gabriel aponta seu rifle para a cabeça do demônio dizendo:
— Mais sorte da próxima vez.
O disparo dá lugar a respiração ofegante de Noriel, se vendo numa rua aberta e deserta, com Profaniel ao seu lado, este frio e em silêncio. Ele tenta reconhecer aquele pedaço de mundo, que em nada remete a Londres que conheceu. Só vê uma desordem de casas de concreto, deterioradas, com pichações escandalosas e lixo por todos os lados. Ainda é noite, mas um fogo de fogueira ao longe dança no horizonte. Pode ouvir gritos na distância. Gritos de festa junto com gritos de dor. Até esse momento, qualquer dúvida sobre o relato de Gabriel chegara ao fim. Realmente o mundo que conheceu acabou.
Voltando-se para trás, viu algo que custou reconhecer. A destruição foi maior naquele prédio, mas ainda lhe restam algumas paredes, tão antigas quanto a vida humana de Profaniel, ou até mais. É ali, a velha igreja anglicana onde ele se fez mortal, onde desposou Kate e também onde chorou em seu funeral. E, se ele não está enganado...
Profaniel vai até a igreja. Noriel o segue de longe. Ambos vêem na parede que resta de pé uma pichação dizendo:
“IF GOD IS AGAINST US, WHO WILL BE FOR US?”
“SE DEUS É CONTRA NÓS, QUEM SERÁ POR NÓS?”
Profaniel não dá atenção aquilo e entra, tendo de saltar por montes de lixo e entulho, até acessar o que outrora fora a nave da igreja. Ainda vêm em sua memória os detalhes góticos do santuário, que hoje é palco da devassidão humana. Deus os abandonou, eles pensaram. E então depredaram sua casa. Como se templos de pedra pudessem servir de casa para Aquele que tudo fez. Mas são homens e ensinar-lhes inteligência é perda de tempo.
Atrás do que resta do altar, manchado de algo que aos olhos de Noriel parece ser sangue, Profaniel procura algo. Em silêncio, vasculha cada pedaço de chão. É então que, ao remover grandes blocos de entulho – sem perceber a força sobre humana que usa para isso – Profaniel encontra uma passagem para o subsolo. Do tamanho de uma porta convencional deitada sobre o chão, feita de metal e trancada com fortes correntes. Profaniel a abre sem fazer força.
A porta escondia uma escadaria que Profaniel desceu sem receio. Noriel ainda o segue, notando as ratazanas que fogem se enroscando nas teias de aranha. Ao fim da escada, a fraca luz vinda de fora é insuficiente para iluminar o local. Noriel vê a sombra de um lampião a gás, e junto dele uma caixa de fósforos. Acedendo o lampião o lugar ganha um tom assustador.
Teias pendem do teto e por todos os lugares. As quatro paredes, num espaço apertado de não mais de três metros quadrados, abrigam gavetas de concreto. Ao chão, alguns ossos espalhados. Ali é um jazigo, uma câmara mortuária. E Profaniel fita, no alto da parede a sua frente, o brasão da família Goodsmith.
— Kate! — diz num soluço. Ele desejou ver Kate novamente, e até ela foi trazido. Bem a sua frente, a gaveta que leva seu nome. A mais perto do chão. Com lágrimas brotando em seus olhos, Profaniel limpa a fuligem das bordas da tampa e depois a abre, mais uma vez usando a força que tem sem perceber.
Então o esquife se revela ao seu lado. Coberto por cinzas que um dia foram flores. Com a madeira apodrecida, Profaniel não precisa da sua força descomunal para abri-la também. Noriel nota claramente, sob a fraca luz do lampião, que as lágrimas tomam seu rosto. Dentro do caixão, os restos mortais do que fora uma jovem mulher. Agora não mais do que ossos escurecidos vestidos com um vestido consumido pelo tempo. Ainda resta ali tufos de cabelo ruivo. E o mais aterrador é o que jaz ao seu lado, apoiado em seu braço...
O pano onde esteve enrolado já não serve para tal função, e Profaniel sente uma dor tomar seu peito quando vê o corpo do seu filho natimorto, sepultado junto com a mãe. Michael seria chamado. Estranhamente mais conservado, o bebê é uma múmia, com pele seca e um rosto definível e assustador. Profaniel o pega nas mãos com cuidado, mesmo com as mãos trêmulas, e traz o frágil corpo até próximo ao seu rosto encharcado.
— Meu filho...! — balbucia, vendo aquele rosto inocente, tão pequeno e desprovido de vida. Destinado a morte, como é dado a todo ser humano. Michael, em homenagem ao Arcanjo Miguel, que agora Profaniel percebe que também foi morto, como um humano. Como se sua vida e tragédia fossem uma profecia do que viria a acontecer. Agora já não faz questão de conter qualquer lágrima, e o choro dele comove a Noriel, que também chora, tremendo a mão que segura o lampião. E nesse choro sofrido, Profaniel vê o corpo de seu filho se desmanchar em suas mãos. — Não! — diz quando os farelos se precipitam ao chão. — Não!!
Mas é tarde, e o que restava de sua existência terrena se converteu em pó. Do pó ao pó, como havia dito o Senhor. Mas em seu pranto, Profaniel lembra que a vida não se limita à matéria. Existe a vida após a vida. E lá ele encontraria seu amor perpétuo. Lá estaria Kate, e também Michael, e para lá ele deveria ir. No entanto antes ele olhou para Noriel, mal percebeu que seu amigo compadecia-se de seu sofrimento. Em seus olhos, Profaniel deixou claro que agora ele não poderá segui-lo. Antes de que Noriel pudesse compreender, via o amigo abaixar a cabeça e se concentrar, para depois sumir dali, deixando apenas um frio penetrante. Noriel entendeu onde ele iria.
* * *
Conclui no próximo capítulo.
Agradecimentos ao Nery pela revisão!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Acabei de ler esse novo capitulo e MEU DEUS!
Anderson. Essa fic só melhora!
Profaniel entrando em cena tá show!
Adoro o modo como o Gabriel age...
E mais ainda como Noriel é realmente um anjo kkkkk
Agora... esse final foi forte... MUITO forte!
Adorei. To fã *-*
Anderson. Essa fic só melhora!
Profaniel entrando em cena tá show!
Adoro o modo como o Gabriel age...
E mais ainda como Noriel é realmente um anjo kkkkk
Agora... esse final foi forte... MUITO forte!
Adorei. To fã *-*
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
essa é a fic clássica ou a nova do Profany?
ainda tenho q ler isso.
ainda tenho q ler isso.
Ocelot-
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Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Ocelot, com certeza deve ser a clássica, afinal, está contando desde o começo, né?
Agora, fantástica a história deste capítulo, Anderson. Tenso, denso e o futuro é uma incógnita. Lord Gabriel se mostra um lider nato pensando e antecipando todas as possibilidades para o sucesso da operação. Apesar do rancor de Profaniel, a gente sente no Gabriel que ele só cumpriu o que a lei determinava, acredito que o novo aliado no futuro deve compreender isso. O final com Noriel fugindo com Profaniel me soou triste aqui, acho que os outros Nefilins não terão sorte contra um demônio da categoria de Azazyel. Espero que eu esteja errado.
E o epílogo foi magnífico, senti aqui a dor de Profaniel ao ver o filho virar pó em suas mãos após tantos séculos.
Parabéns Aracnos. Excelente capítulo!
Agora, fantástica a história deste capítulo, Anderson. Tenso, denso e o futuro é uma incógnita. Lord Gabriel se mostra um lider nato pensando e antecipando todas as possibilidades para o sucesso da operação. Apesar do rancor de Profaniel, a gente sente no Gabriel que ele só cumpriu o que a lei determinava, acredito que o novo aliado no futuro deve compreender isso. O final com Noriel fugindo com Profaniel me soou triste aqui, acho que os outros Nefilins não terão sorte contra um demônio da categoria de Azazyel. Espero que eu esteja errado.
E o epílogo foi magnífico, senti aqui a dor de Profaniel ao ver o filho virar pó em suas mãos após tantos séculos.
Parabéns Aracnos. Excelente capítulo!
Mr. Black-
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Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Olá Tebh! que bom que gostou! confeso que esse é um dos meus capítulos preferidos junto com o próximo que talvez te deixe sem fôlego!Vampira escreveu:Acabei de ler esse novo capitulo e MEU DEUS!
Anderson. Essa fic só melhora!
Profaniel entrando em cena tá show!
Adoro o modo como o Gabriel age...
E mais ainda como Noriel é realmente um anjo kkkkk
Agora... esse final foi forte... MUITO forte!
Adorei. To fã *-*
Gabriel é o cara. Ainda tenho guardadas boas cenas pra ele.
E Noriel faz seu papel de anjo da guarda.
Muito obrigado pela leitura e comentário, Tebh! Beijos!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Essa é a série nova. A série Apócrifa, que quer dizer "não oficial". A que eu chamo de "clássica" ou "oficial" é a que escrevi por volta de 2004-2005, que tem um enredo mais simples, mais pra série de TV do que pra livro. Estou lançando ela no UNF, pra quem tiver curiosidade de ver.Ocelot escreveu:essa é a fic clássica ou a nova do Profany?
ainda tenho q ler isso.
E sim, você tem que ler isso!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Aracnos escreveu:Essa é a série nova. A série Apócrifa, que quer dizer "não oficial". A que eu chamo de "clássica" ou "oficial" é a que escrevi por volta de 2004-2005, que tem um enredo mais simples, mais pra série de TV do que pra livro. Estou lançando ela no UNF, pra quem tiver curiosidade de ver.Ocelot escreveu:essa é a fic clássica ou a nova do Profany?
ainda tenho q ler isso.
E sim, você tem que ler isso!
Olha... e eu pensei q essa era a clássica!
Essa já é a Reload?
E to na espera de ver o que mais vai acontecer com Gabriel e os outros... to ansiosa d+
ótimo texto... juro... me arrebatou!
Beijos!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Grande Black!Mr. Black escreveu:Ocelot, com certeza deve ser a clássica, afinal, está contando desde o começo, né?
Agora, fantástica a história deste capítulo, Anderson. Tenso, denso e o futuro é uma incógnita. Lord Gabriel se mostra um lider nato pensando e antecipando todas as possibilidades para o sucesso da operação. Apesar do rancor de Profaniel, a gente sente no Gabriel que ele só cumpriu o que a lei determinava, acredito que o novo aliado no futuro deve compreender isso. O final com Noriel fugindo com Profaniel me soou triste aqui, acho que os outros Nefilins não terão sorte contra um demônio da categoria de Azazyel. Espero que eu esteja errado.
E o epílogo foi magnífico, senti aqui a dor de Profaniel ao ver o filho virar pó em suas mãos após tantos séculos.
Parabéns Aracnos. Excelente capítulo!
Primeiro agradeço a presença e, como respondi pro Renan, essa é a série nova... e ela não mostra desde o começo não... não mostro aqui como Profaniel virou humano, por exemplo... só cito uns trechos...
Vamos lá, Gabriel sabe - ou aparenta que sabe - o que faz. Mas o jogo figiu um pouco de suas mãos, como mostrarei nos próximos capítulos.
Os nefilins não tiveram maiores problemas contra Azazyel, pois veja bem que Gabriel aproveita que ele ainda está fraco e o empurra pra dentro do círculo de giz e depois atira nele com o rifle. é claro que o demônio não morreu, mas pelo menos não dará as caras por enquanto.
Vale aqui deixar uma nota sobre Azazyel. No Livro de Enoque, texto apócrifo (não-oficial) mas muito reconhecido, Azazyel é citado como um anjo rebelde que ensinou aos homens as artes da guerra e da fabricação de armas. Por isso ele diz na fic que arma mortal alguma pode feri-lo, pois foi ele quem as concebeu. Portanto ele é realmente um demônio do mais alto nível. Quase um deus da guerra, de outras mitologias...
Esse final do capítulo ficou bem emocionante mesmo. Mas ele não é nada perto do que vem no próximo.
Mais uma vez muito obrigado, grande Fred!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Por: Anderson Oliveira
05. O Evangelho de Profany, parte final.
O Encontro.
Isso foi há muito tempo...
Londres, Reino da Grã-Bretanha, 1791.
A aglomeração em frente ao Royal Opera House era grande. Choveu na noite passada, e o barro se espalhava pelas ruas calçadas, trazido pelas rodas das carruagens. Mas Profaniel não fazia questão de sujar os sapatos, e descendo primeiro, antes mesmo que o cocheiro, ele deu a mão para ajudar a sua esposa a descer. Aquela mão delicada, coberta por uma luva de cetim, encontrou a sua e se apertou fortemente entre seus dedos para poder descer da cabine. Tomando cuidado de levantar um pouco o vestido para não sujá-lo, Kate Goodsmith quase tropeçou mas encontrou o braço forte do marido que a amparou.
— Cuidado, querida. — disse o homem alto, com longos cabelos loiros penteados para trás, olhos verdes e um rosto bondoso, que vestia uma casaca comprida azul escura, com detalhes em dourado. Amparada em seus braços, Kate parecia tão pequena, com seus cabelos avermelhados presos sob um chapéu com plumas, o rosto liso com maquiagem leve que ressaltava seus brilhantes olhos verdes, vestida com um vestido vermelho e branco de rica seda do oriente. Ela lhe sorriu dizendo:
— Não tenho medo de cair. Sei que você estará ao meu lado. Como meu anjo protetor. — então ela se recompôs, e enquanto o cocheiro levava a carruagem dali, de braços dados os dois se dirigiram à entrada da casa de espetáculos.
Senhores e senhoras da corte preenchiam todo o vestíbulo. A aristocracia britânica – pelo menos os que apreciam boa música – viera em peso para assistir a primeira apresentação do maestro e compositor austríaco Joseph Haydn. As conversas entre as damas era se o rei George III compareceria. Não que Profaniel se importasse, pois mesmo vivendo na corte e desposando a herdeira do conde de Berkshire pouco ligava para essas convicções mortais e se recusaria a curvar-se ante qualquer ser de carne. Nem mesmo quando era um anjo – e essa lembrança ficava cada vez mais distante – era dado a obedecer hierarquias. Tanto que violou leis sagradas para se fazer mortal por seu grande amor.
Tinha sempre a impressão que essa sua atitude anárquica um dia lhe iria causar problemas, seja frente a autoridade do rei ao mesmo frente as Leis de Deus. Não se curvaria ante nenhum mortal, mas se curvava dia e noite ao seu Criador, mesmo depois de ter abandonado seu estado angelical. E isso o fizera por amor, e sabia que Deus não poderia ver esse amor com maus olhos. E também, ainda pensava, Deus é o criador de todas as coisas e conhece todos os desígnios, então nada acontece sem que ele saiba. Mesmo a mortalidade de um de seus filhos.
Os dois já tomavam seus lugares no camarote do Conde Joseph Williams e sua esposa Madalene, irmã de Kate. Williams era um homem na casa dos cinquenta anos, que na ocasião usava a peruca branca dos lordes, que contrastava com seu farto bigode escuro. Madalene ainda não chegara os trinta e tinha o mesmo cabelo ruivo de Kate, porém seus olhos eram castanhos e seu semblante já era castigado depois de dois filhos.
O concerto começara, Haydn tomou seu lugar coberto de aplausos e começou a reger a orquestra que executava sua Sinfonia Nº 92. Profaniel sempre apreciou música. A música é um elo de ligação entre este mundo e o próximo. Sábios eram os povos antigos que celebravam seus deuses com cânticos, flautas e harpas. Mas então vieram homens idiotas que distorceram a palavra do Cristo e mergulharam o mundo nas trevas da ignorância, chegando a dizer que música era pecado. Profaniel tinha pena de sua imbecilidade. Não há nada mais divino e santo do que boa música, como a de Haydn, assim como seu conterrâneo e aluno, Mozart.
E aqueles sons divinos eram como poder ouvir a voz de Deus novamente. E esse pensamento lhe deu uma certa tristeza. Mas no próximo acorde ele se esforçou para afastar essa ideia antes que as lágrimas começassem a correr em seu rosto. E no embalo da música, com a mente quase em outro mundo, seus olhos encontraram os de Kate, que apreciava a melodia, mas de outra forma, mais mortal.
Mas não importava. Profaniel a amava tanto, e sabia que a amaria para todo o sempre. Como se desde o princípio do tempo ele a amasse, ainda que ela nem existisse. Ele apertou sua mão pequena e ela lhe deu um olhar singelo como resposta. Se ainda tinha alguma coisa a se queixar, era a de após alguns anos de união ainda não tiverem tido um filho. Mal sabia ele que teria um filho dentro de poucos anos, porém complicações no parto tirariam a vida de Kate e também da criança. E como que antecipando esses acontecimentos numa profecia, Profaniel estremeceu, apertou forte a mão da esposa e resolveu se concentrar na música. E que música linda...
A lembrança desse dia tomou sua mente durante algum tempo impreciso. Profaniel estava em Londres, no jazigo da família Goodsmith, junto ao túmulo de Kate. Seu desejo agora era vê-la, e tal desejo o levou até aqui. Um mundo esverdeado, coberto por uma névoa espessa e fria, e não se podia ver nada além dela. Uma névoa que lhe trazia lembranças de uma época que pra ele é difícil crer que foi há tanto tempo. Kate, onde você estará? E quando ele corta mais uma camada de névoa a sua frente, tem a impressão de sentir um doce perfume. Será ela?
Rapidamente ele procura o fim da névoa verde sem saber em quê está pisando. O perfume fica mais forte e ele sente algo a mais no ar, como o cheiro de flores e relva. Ele corre, lutando para sair da bruma que parece não ter fim. Ouve seus passos ecoarem, como se pisasse na dura pedra. Ainda corre até que percebe a névoa se dissipar um pouco, podendo ver que pisa sobre um piso de pedras, como de um velho castelo.
E então ele também vê as paredes, suas colunas e o teto em abóbada. E a sua frente a luz parca de uma saída cada vez mais perto. E o perfume mais presente. Ouve também sons que não identifica. A poucos passos da saída então sua vista começa a perceber o que tem à sua frente, e seu coração quase não lhe cabe no peito...
Uma árvore grande, com sua copa repleta de folhas verdes que se agitam calmamente ao vento. Um campo florido, mas que não se vê ao longe por causa da nevoa, dando a impressão da árvore estar no centro de uma grande bolha, onde nem o céu acima se pode ver. E sentada aos pés da árvore, com seu vestido branco se espalhando pela grama, cabelos soltos sobre os ombros e com os braços segurando algo... está Kate. Profaniel se aproxima devagar, com uma lágrima molhando o rosto, mas quando seu pé toca a soleira daquela porta ele hesita. Sua aparência é monstruosa e ele se esconde na sombra por um momento.
Ouve que Kate está cantando. Cantando uma canção de ninar. O que ela leva nos braços é um bebê. É seu filho. Profaniel busca forças e avança. E magicamente, quando passa pela porta e desce os degraus até o jardim, envolto na névoa que ainda flutua naquele ambiente, sua imagem volta a ser de homem alto e forte, rosto belo e cabelos brilhantes. Suas roupas não mudam, mas parecem novas. O Selo em seu peito nu sumiu, assim como as chagas em seus pulsos. Está de volta a forma que tinha quando era um mortal. A única forma que Kate conheceu.
Então ele caminha até ela. Kate ainda não o viu. Ainda embala o bebê em seus braços. Profaniel chega até onde a sombra da árvore o cobre. Lágrimas ainda molham seu rosto e as palavras não se encontram em sua garganta. Só ouve a voz aveludada da mulher que ama. Até que ela para de cantar. E para sua surpresa, lentamente Kate levanta os olhos, seus lindos olhos verdes, e lhe sorri. Um sorriso branco e perfeito. Em meio ao pranto incontido, Profaniel lhe diz:
— Kate...
— Oi meu amor! — ela responde e seu tom de voz é natural. — Estava te esperando. Você demorou!
— De-demorei...?
— Sim. Mas está aqui agora! Isso me deixa muito feliz! — Kate depois olha para o bebê em seus braços, embora Profaniel veja apenas um embrulho. — Veja, Michael, seu papai está aqui! Eu disse que ele voltava!
— Michael... meu filho... — Profaniel nunca tinha visto o rosto de seu filho, que nascido morto, fora levado pelas parteiras. Kate tira o xale que cobre o bebê e Profaniel se atenta para ver seu rosto. Porém quando o pano é removido, ele dá um passo para trás.
— Diga oi para o papai, meu filho! — diz Kate para a criança, que aos olhos de Profaniel tem a mesma face mumificada que vira no seu túmulo. Kate embala em seus braços um cadáver inanimado. — Profaniel, o que foi? Está estranho. Venha, sente-se perto de mim.
Ele hesita um pouco, mas enfim se aproxima e deita o joelho sobre a grama. A face de Kate, agora de mais perto, está como quando ele a conheceu. Jovial e bela, como se ainda tivesse seus dezoito anos. Ela olhe sorri, suas faces coradas emolduradas pelos cabelos avermelhados. Profaniel leva a mão ao seu rosto e ela fecha os olhos para receber seu toque, mas Profaniel não a sente, como se aquela imagem fosse etéria. Quando ele lembra que ela está morta. Esta a sua frente é sua alma, em alguma espécie de esfera do mundo dos mortos. Ele retira a mão, sentindo dor por não poder tocá-la novamente.
— Profaniel, quando iremos voltar para casa? — ela pergunta de repente. Ele a olha e tem a certeza de que ela não sabe que está morta.
— Eu... eu não sei, querida.
— Que dia é hoje? — o tom de voz de Kate continua natural.
— Não sei... Domingo, talvez. — Profaniel não sabe porque disse que era domingo. Mas Kate não pareceu dar atenção.
— Estou com saudades da minha irmã Madalene. Ela está bem? — “Certamente está morta também”, pensa Profaniel, “assim como todos daquela época”. Kate não espera que ele lhe responda e se volta para o bebê em seus braços. Toca o rosto dele com carinho e Profaniel apenas vê o rosto mumificado de seu filho. Seu peito dói de tamanho sofrimento. Kate diz ao bebê: — Veja, Michael, o papei está aqui! Profaniel... Profaniel!! Nome estranho, não é? Vamos lhe dar um apelido? Profanie, Profanie! Diga, meu filhinho, diga: Profanie... Profany!! Profany...!
Mas a criança nada diz. Continua imóvel, como o cadáver que é. E na mente de Profaniel vem a certeza de que o pós-vida de Kate se resuma a isso: embalar uma criança morta. Seria esse seu castigo por gerar o filho de um Nofilim? Ou está assim depois que Satanás tomou o poder? Francamente Profaniel prefere não saber a resposta, e a essa altura já não contem as lágrimas que lhe tomam a face. Kate silencia-se um pouco e o olha com ternura. Um silêncio plácido se faz por algum tempo até que é rompido assustadoramente:
— Profany!
A múmia de Michael diz olhando para Profaniel que cai para trás assombrado. Olhando de volta, a criança está da mesma forma: morta e podre. Mas sua voz soou grave, como uma maldição. Kate não reagiu, como se nada de anormal tivesse acontecido. Ela começou a cantar novamente a canção de ninar. Profaniel quis tocá-la novamente, mas sentiu medo. Nisso ela lhe olhou e abriu seu lindo sorriso dizendo:
— Oi meu amor! Estava te esperando. Você demorou! — ela diz, como se o visse agora, nesse instante. Um misto de confusão e tristeza tomou conta de Profaniel. Não adiantaria nada que fizesse, Kate estaria para sempre longe dele. Mais inalcançável do que quando ele era um anjo e ela uma mortal. E ele sente a fria ironia das coisas.
Profaniel já se levantava, decepcionado com seu destino, quando percebe o ambiente ao redor escurecer. Como se uma sombra envolvesse aquela bolha de brumas e vazio. Ele olha para Kate, mas ela continua a embalar o bebê e nada percebe. Fica então cada vez mais escuro. A porta por onde ele entrou não mais pode ser vista. Apenas o tronco forte da árvore e o pedaço de chão gramado onde Kate está sentada permanece visível. Profaniel se levanta quando ouve alguém dizer:
— Profaniel. — a voz é fria, mas calma e serena, como a voz da própria morte.
— Quem está aí? — pergunta Profaniel olhando ao redor. Porém não houve resposta. A escuridão se acentuou até o ponto onde ele não via nada além da árvore e de Kate. Então um brilho fosco começou a surgir à direita da árvore, e Profaniel viu o brilho ficar mais forte e mais branco até que dele surgir um homem.
Seu manto de puro vermelho chegava até o chão, cobrindo seus pés e levantando a névoa que o rodeia numa sinistra dança. Sobre seu tronco, uma armadura branca e reluzente como prata. Em seus braços ele trazia braceletes também de prata com serpentes entalhadas. Seus cabelos brancos e longos pendiam às suas costas, levemente sacudidos em um vento tímido e vagaroso como um sonho... Seus olhos refletem a sabedoria de quem viu tudo e todas coisas que existiam antes mesmo do Universo. Com esses olhos o olhar que ele dirigiu para Profaniel foi atormentador.
— Lúcifer. — diz Profaniel frente ao Portador da Luz.
— Realmente... — diz Lúcifer o medindo de cima a baixo sem qualquer mácula na voz. — Realmente me esqueci de você. Mas deixe disso, e volte a sua forma verdadeira. — Lúcifer faz um aceno, e contra sua vontade Profaniel vê seu corpo tornar-se magro e seco outra vez como se se descascasse uma fruta podre. Sua boca se fechou em frestas e o Selo reapareceu. E com um sorriso irônico, Lúcifer disse: — Muito melhor.
— Então Gabriel tinha razão. Você...?
— Sim. Como devia ter sido desde o princípio. — disse com orgulho e a força da sua palavra abalou aquele ambiente, mas Profaniel nada manifestou. — Mas não vim aqui para isso. Então, Profaniel, confesso que esqueci da sua existência, da sua condenação ao Abismo... E o fato de Azazyel ter falhado em te capturar... me deixou muito aborrecido. Já diziam os homens com sua ínfima inteligência: se quiser algo bem feito, faça você mesmo.
— Parece-me que seguiu isso ao pé da letra. — Profaniel tenta manter uma calma sem estar seguro de que a tem. Lúcifer não dá sinal de que percebeu isso, mas seria absurdo pensar que não. Sentir o medo contido de Profaniel talvez lhe dê prazer. Se isso for, então ele saboreia o momento enquanto responde ao outro:
— Ainda não fiz tudo por mim mesmo. Sei que para Gabriel e todos os outros mortais tenha se decorrido muitos anos, mas para mim não. Tudo é muito recente. E tenho tempo para fazer as coisas do meu jeito. E, em seu momento, destruir toda essa existência e recriá-la a meu modo.
— Vai destruir a Criação?! — Profaniel agora não pôde conter a surpresa e o medo que o corroeu. Em resposta, Kristos Lúcifer sorriu.
— Não se desespere, Profaniel. É por isso que vim te encontrar. Não quero que chegue a viver o dia em que eu decretarei o juízo.
— Vai me matar então?
— Matar? — Lúcifer sorriu, mas logo voltou a ficar sério. — Por quê? Você não é um perigo para mim.
— Gabriel disse que--
— Que você usaria a Espada de Miguel? Besteira! Você não vai conseguir achá-la. E... você nem quer fazer isso, certo? Você disse não para Gabriel... Por que eu te mataria...?
— Então o que quer? — Profaniel dá um passo a frente, mostrando que não tem medo do outro. O que não é bem verdade. Lúcifer fica em silêncio, o olhando do alto, pois é mais alto que Profaniel. Por fim responde:
— Você ama aquela mortal, sim? — Profaniel fica em silêncio. — Hunf... patético... Não o amor, não... o amor é a força mais linda que há no Universo, mas... uma mortal? — e sua voz reflete desdem. — Mas, não o julgo, já fostes condenado por isso. Já pagou sua pena. Venho então lhe fazer uma oferta.
— Oferta?
— Diga-me francamente, Profaniel. Achas que eu sou estúpido? Seria eu tolo de exterminar uma criatura tão ímpar sendo que posso tê-lo ao meu lado? É isso que lhe proponho, anjo caído: Tome um lugar ao meu lado e não perecerá quando tudo encontrar seu fim! Venha para mim, e será grande no novo mundo que criarei! — e antes que Profaniel processasse direito tais palavras, Lúcifer repetiu: — Tu amas aquela mortal, não é? — e aponta para Kate, que continua embalando a criança, como se estivesse em outro plano de existência.
Profaniel não responde mais uma vez, mas seu olhar deixa claro que a ama muito. Lúcifer continuou:
— Além do poder que terá se ficar ao meu lado, dar-te-ei também sua amada Kate para todo o sempre, poupando sua alma do fim e dando-lhe um corpo imortal e belo, para que você sacie seu amor. — Profaniel abaixa a cabeça, olhando fixamente para a sombra de Kate logo atrás, enquanto Lúcifer abre seus braços esperando uma resposta. — Veja... Veja como eu posso ser razoável. Não sou aquele monstro de chifres que os homens imbecis pintaram. Você sabe bem disso. Sou como você.
O silêncio de Profaniel começa a irritar Lúcifer, mas ele sabe que este formidável ser, apesar do poder que possui, não deixa de ser um anjo, fraco e idiota. E que também já fora humano, mais incompetente ainda. Profaniel ergueu a cabeça de repente, e seu olhar não era menos frio e rancoroso – com um toque de ironia – do que quando estava frente a Gabriel.
— É muita generosidade vinda do senhor da Criação. Mas numa coisa os homens imbecis acertaram quando te descreveram: você nunca faz nada de graça. Então o que quer em troca?
— Verdade. — Lúcifer sorri e de uma forma fantasmagórica, sem parecer que seus pés tocam o chão, ele se aproxima até bem perto de Profaniel dizendo: — O que pedirei não é muito... Apenas que se ajoelhe diante de mim, e me adore como seu senhor.
— E depois saia matando os nefilins que foram meus irmãos? Seus irmãos...?
— Então recusa minha oferta, Profaniel? Recusa as fortunas que lhe esperam se sentando à minha direita? Vai cooperar com aqueles que lhe tiraram sua mulher e seu filho--
— E onde você estava quando isso aconteceu?! — Profaniel o interrompe com a voz forte, como certamente poucos tiveram a audácia de fazer. — Onde você estava que não me ajudou?! Para mim, isso não o torna melhor do que eles...
Lúcifer mordeu o lábio, e seu olhar faria qualquer mortal desejar a morte. Mas Profaniel permaneceu firme, mesmo que por dentro sentisse um vago medo de ser destruído. Só que ele lembrou do que aconteceu na barca contra Azazyel. Ele tem o Selo, e isso o torna intocável. Nem mesmo Lúcifer pode contra isso. Nem mesmo sendo ele o rei da criação. E essa certeza lhe dava um pouco de coragem.
— Então você recusa minha oferta? — o diabo repetiu.
Profaniel sentiu um aperto no peito, olhando mais uma vez para a alma de Kate, e sabendo que nunca mais a veria ao seu lado. Mas se o preço a pagar para tê-la consigo era trair tudo que acreditava, então era um preço alto demais. E Profaniel sabe que não se dobra frente ao poder de qualquer um. Em sua mente disse para Kate, mesmo sabendo que ela nunca o ouviria: “Adeus, minha querida”.
— Recuso. — diz voltando um olhar desafiador para o demônio.
— Não diga depois que não lhe dei escolha. — Profaniel só pôde ver a mão do outro pousar sobre sua cabeça, e logo em seguida estava caindo no chão há muitos metros de onde estava. É claro que essa explicação é metafórica, pois eles estão em plano espiritual onde tempo e espaço não existem. Mas Profaniel nem se ateve a isso devido a dor que sentia.
— Você não pode... você não pode me matar... — Profaniel se ergue devagar. Mas Lúcifer não está mais no lugar em que estava, e sim bem atrás dele.
— Não posso... Ainda não. Como te disse, apenas alguns instantes se passaram desde minha ascensão. Ainda não obtive poderes totais. Mas esse dia chegará, Profaniel, e saiba que a primeira coisa que farei será te destruir. — ele ergue sua mão, e Profaniel é erguido junto com ele, mesmo que Lúcifer não o toque. — Mas isso não significa que não farei de tua existência um inferno maior que o Abismo de onde fora tirado! — e mais uma vez Profaniel é jogado para o oposto do lugar.
— Eu-eu vou... te destruir... — Profaniel sente como se sua carne doesse. Mas aprendeu a suportar a dor, após séculos na lava do Tártaro.
— Me destruir? Você?! — Lúcifer, já próximo a ele, ri com deboche. — Não seja ridículo! Você é um verme! Patético e miserável verme!! Nem que consiga a Espada de Miguel, nenhuma força nesse Universo poderá contra mim.
— A Espada de Miguel... — Profaniel se põe de pé, mas encara Lúcifer com o corpo curvado, como se estive preparado para outro ataque.
— Pobre tolo. Pois bem, se é isso que você quer. Se você gosta de sofrer. Venha até mim, até meu trono, com a espada e tire-me de lá. Eu o desafio! — usando mais uma vez seu poder, Lúficer trás Profaniel para junto dele, ficando seus rostos há centímetros de distância. — Eu o desafio!! — Profaniel nada fala, em seu semblante Lúcifer lê que ele o odeia. Não o tanto quando pensa odiar, ou o quanto é capaz de odiar. E como se o ódio o alimentasse, Lúcifer sorriu e disse: — Cuspiria na minha face agora, não é, Profaniel? Faria isso, se sua boca deformada permitisse. Pois para que não diga que sairá desse encontro sem nada, lhe darei um presente... Farei o favor de esconder essa aberração!
Lúficer leva a mão até a boca de Profaniel e este tenta gritar quando sente os dedos do demônio entrarem em sua pele. Quase torcendo a cabeça do outro, Lúcifer o sacode para todos os lados e depois o solta no chão. Profaniel cai sentado e seus cabelos cobrem seu rosto.
— Erga-se. — diz Lúcifer com sua altivez. Uma fumaça branca subia do rosto de Profaniel, ainda abaixado, até que vagarosamente ele ergueu a cabeça, com olhos cheios de rancor, e com uma espécie de máscara cobrindo sua boca e nariz, como se ela estivesse cravada em sua carne. — Agora tu também tens uma marca minha.
Lúcifer lhe vira as costas e começa a caminhar em direção à árvore, que pouco se pode ver. Mas Profaniel ainda distingue um vulto branco que é a alma de Kate. E nesse momento teme que seu pensamento seja verdadeiro quando percebe Lúcifer indo de encontro à sua esposa.
— Para me certificar que você virá até mim com a espada... — diz O estrela da Manhã. — Te darei outro incentivo. — de súbito, algo como muitas cordas ou cipós brotam do chão onde Kate está e a amarram. O bebê que segurava vai ao chão e por ele é sugado. Profaniel tem a impressão de ouvir Kate gritar, como gritara na noite em que morreu, enquanto dava a luz ao seu filho. Ele vai até seu encontro, mas por algum truque do diabo, por mais que ele corra ele não chega até lá. Então, impotente, ele vê Kate sendo feita em pedaços e cada parte dela ser devorada pela terra. Lúcifer se volta para ele dizendo: — Ela estará comigo, Profaniel. Lembre-se que você só a verá novamente se me derrotar ou se me adorar como seu deus. E enquanto nenhuma dessas coisas acontecer, ela sofrerá para o meu bel prazer.
— EU VOU ACABAR COM VOCÊ!! — brada Profaniel, ainda sem poder se aproximar. Mas mesmo de longe ele percebe que Lúcifer lhe sorri quando diz:
— Agora você me odeia o bastante. — e ele se vira, indo embora pelo brilho fosco que se abre à sua frente.
— NÃO! VOLTE AQUI! — grita o nofilim ainda impotente.
— Vá embora para aquela imunda bola de lixo e tente resgatar a Espada de Miguel. Estarei esperando... — e Lúcifer lança-lhe um olhar cortante. — Profany!
Quando ele passa pelo feixe de luz, parece que algo se rompe e a escuridão do ambiente é varrida por uma cegante luz e uma energia que faz Profaniel voar para trás. Com a força desse fenômeno, ele não vê o que vem a seguir. Apenas sente um forte vento quase lhe arrancar a espinha. É quando percebe que afinal de contas está no plano espiritual, e não há espinha para ser arrancada.
Noriel deixou o lampião em um gancho que encontrou e se sentou sobre um velho e sujo banco de concreto. Aquele jazigo escuro faria muitos homens tremerem, mas para ele que já fora um anjo tudo isso não passa de bobagem. Sepultar as carcaças podres com rituais e homenagens é mais uma das fantasias inúteis dos humanos. Mas mesmo assim, tratou de ajeitar como pôde o caixão de Kate, cobri-lo e guardá-lo na gaveta. Tal trabalho e com tudo o que passou nesse dia o deixou desgastado, e agora ele sente fome.
Se amaldiçoa por não ter em sua bolsa um pedaço de pão que fosse e nem sequer algum dinheiro. Também não contava que sairia do barco de Haziel e viria para Londres – ou o que resta dela. Ouviu boatos, já há algum tempo, de que o novo rei do Reino Unido é um homem bom e que luta para impor a ordem e a justiça. Mas parece que ele não faz o suficiente. Pelo pouco que Noriel percebeu, de ruas sujas e casas depredadas, a anarquia impera nesse reino. Isso é bem comum depois que o homem teve a certeza de que Deus não estava mais presente.
Certeza essa que Noriel agora contesta, depois que soube quando rompia o véu dos mundos. E sabe que Gabriel estava certo. Se os demônios descobrirem isso, tudo estará perdido definitivamente. Enquanto nisso refletia ouviu atrás de si um ruído. A princípio julgou ser apenas seu estômago faminto, mas depois viu o que realmente era.
— Pelo Altíssimo! — exclama ao ver Profaniel se levantando do chão, do mesmo lugar de onde sumiu momentos atrás. Percebeu nele a máscara que cobre sua face mas não esconde seu semblante de dor. Profaniel se põe de pé, e sem nem olhar para Noriel se dirige à porta. — Profaniel, espere!
— Deixe-me. — responde o nofilim sem sequer olhar para trás. Então ele sobe as escadas e atinge a superfície, com Noriel ao seu encalço, este se apoiando em seu cajado e a passos lentos, não consegue acompanhar o amigo. Vê que Profaniel deixa a igreja e se dirige ao sul. Ele anda sem rumo, com passos vacilantes e perdidos.
— Profaniel! — Noriel o chama, mas sem sucesso. E tão pouco tem sucesso em alcança-lo.
Profaniel desce uma rua. Um pranto despercebido em seu rosto, trazendo apenas tristeza no olhar e não mais toda a ira que sentia. Apesar de ser pouco provável que não a sinta no fundo do peito. Não pensa em nada concreto. Apenas sente dor, como se Kate estivesse morrendo mais uma vez. E mais uma vez ele não pode fazer nada. Mas assim ele desceu a rua, e no próximo cruzamento encontra algo marcante o suficiente para fazer pará-lo.
Tomando conta da rua, dezenas de pessoas em trajes pretos e vermelhos, alguns não mais que farrapos, muitos sem roupa alguma, portando facas e armas de fogo, em meio a tochas e piras ardentes. Alguns tocam tambores e outros dançam numa dança frenética e animalesca. Porém o mais assustador vem a seguir, quando Profaniel vê que aos pés de uma estátua de um homem com cabeça de bode, na alegórica, carnavalesca, ignorante e deturpada representação de Satanás, há uma fogueira na qual são atiradas pessoas vivas.
São atiradas ao fogo não sem antes apanharem e serem violentadas até não poder mais. Pode-se ver que atrás da estátua, amarradas em postes, outras pessoas aguardam o mesmo destino. São homens, mulheres, velhos e jovens e, para a total desolação de Profaniel, muitas crianças.
— ABOMINAÇÃO!! — ele grita, e seu grito se faz ouvir por todos. Os tambores cessam, a carnificina também e todos olham este que chega. Portador de uma aura sinistra, Profaniel é confundido com algum demônio ou emissário destes, e um homem forte, vestindo um sobretudo preto com um capuz a cobrir sua face coberta de tatuagens e piercings, se aproxima para saudá-lo.
— Salve aquel--
Antes que pudesse concluir o que veio dizer, o homem é golpeado na barriga, levando uma cotovelada na nuca em seguida. Profaniel saca de sua cintura um facão e o empala. Sem pestanejar, usa o facão para decepar aquele que esta mais perto de si. Os outros, mais próximos e armados, partem para um contra-ataque. Profaniel é alvejado com tiros e isso o faz recuar e dobrar o joelho. Seu sangue pinga no asfalto, mas tão logo que se levanta todos veem as feridas se fecharem.
Sem nada dizer, Profaniel os ataca com o facão e seus braços caem rolando pelo chão. Outros veem e lhe atacam com facas e até uma espada, mas os cortes rapidamente são sarados. Cansado do facão, Profaniel o deixa de lado e ataca com suas próprias mãos, demonstrando sua força sobre-humana. As mulheres que participavam do ritual procuram fugir, mas também se tornam alvos fáceis, sendo executadas sem piedade. Resgadas ao meio como papel. Ele joga seus corpos contra as paredes das casas esmagando suas cabeças. Um por um até não restar mais ninguém.
Noriel chega nesse momento, e se apoiando em seu cajado para não desmaiar, vê Profaniel ofegante, com o corpo coberto de sangue e suor. Ainda nessa corrente de adrenalina, soca a estátua do diabo a derrubando no chão, onde ela se espatifa. Depois Profaniel, frio e passivo, pega do chão uma faca e vai até os prisioneiros, desamarrando primeiro uma garota que está mais próxima.
Esta garota é a única que o fita sem medo, o vendo como seu salvador. Um salvador que ela clamava desde que sua casa foi invadida e sua família morta. E por todo o caminho que ela foi carregada, violentada e humilhada de Liverpool até aqui. Uma ferida na diagonal cruza seu rosto magro e belo. E a jovem Liza Thompson[1] vê seu salvador lhe soltar e jogar a faca em seu colo, para que ela solte os outros. Os dois nada dizem, e Profaniel se afasta, indo de encontro a Noriel.
Na passagem, tira do primeiro homem que derrubou seu sobretudo, o olhando para ver se foi poupado de manchas de sangue, e achando seu estado satisfatório o veste. Vê no muro à sua direita a pichação que vira antes na igreja.
“SE DEUS É CONTRA NÓS, QUEM SERÁ POR NÓS?”
— Eu serei. — diz, não se importando que ninguém tenha ouvido, e passando por Noriel que o olha com assombro. Profaniel lhe devolve o olhar dizendo: — Vamos. Temos que achar aquela espada.
— Profaniel...
— Não. Profaniel não existe mais. Morreu com sua esposa, Kate Goodsmith. — ele colocou o capuz, tornando sua figura mais sombria e assustadora, e disse caminhando na noite, com Noriel ao seu lado, e a jovem Liza lhe observando à distância: — Eu sou Profany.
* * *
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[1] – Liza apareceu no capítulo 2, lembra?
A Seguir: O Rei-Drúida.
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Essa fic está genial, Aracnos. Excelente capítulo. O drama do reencontro de Profaniel com a alma de sua amada e a batalha contra Lúcifer foram fenomenais. Eu sabia que Profaniel iria ser contra Lúcifer, mas queria saber onde os dois seriam contrários porque o herói não tinha grandes motivações para seguir ao lado de Deus depois da história de seu passado, mas você conseguiu ser coerente e dar uma explicação plausível para ficarem em lados opostos. É o fim de Profaniel, é a vez agora de Profany!
Mr. Black-
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Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Fala Black! que bom que gostou desse capítulo.Mr. Black escreveu:Essa fic está genial, Aracnos. Excelente capítulo. O drama do reencontro de Profaniel com a alma de sua amada e a batalha contra Lúcifer foram fenomenais. Eu sabia que Profaniel iria ser contra Lúcifer, mas queria saber onde os dois seriam contrários porque o herói não tinha grandes motivações para seguir ao lado de Deus depois da história de seu passado, mas você conseguiu ser coerente e dar uma explicação plausível para ficarem em lados opostos. É o fim de Profaniel, é a vez agora de Profany!
Quis colocar nele a principal motivação que Profany tem: seu amor. E só para salvar sua amada é que ele fará o que deve fazer. Ainda mais porque o diabo o desafiou a isso.
Obrigado pelo comentário, meu amigo!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Acabei de ler... e nossa! Essa desfecho foi arrebatador...
Gosto de historias que mesclem o lado espiritual... (tinha uma passagem parecida em A Sociedade em sua primeira versão) em relaçao a Kate. Gostei MUITO de como tratou... ficou maravilhoso!
A forma como Lucifer o poe em um desafio melhor ainda...
e poxa... fiquei muito triste em ver Liza perdendo a familia. pensei que a historia dela encontraria a dele de outra forma. Ela ainda "voltará"?
Estou na torcida por Profany! E sua busca pela Espada!
Gosto de historias que mesclem o lado espiritual... (tinha uma passagem parecida em A Sociedade em sua primeira versão) em relaçao a Kate. Gostei MUITO de como tratou... ficou maravilhoso!
A forma como Lucifer o poe em um desafio melhor ainda...
e poxa... fiquei muito triste em ver Liza perdendo a familia. pensei que a historia dela encontraria a dele de outra forma. Ela ainda "voltará"?
Estou na torcida por Profany! E sua busca pela Espada!
Re: Profany, Contos Apócrifos #5 na pg 2
Oi Tebh! Que almoço comprido, hein!Vampira escreveu:Acabei de ler... e nossa! Essa desfecho foi arrebatador...
Gosto de historias que mesclem o lado espiritual... (tinha uma passagem parecida em A Sociedade em sua primeira versão) em relaçao a Kate. Gostei MUITO de como tratou... ficou maravilhoso!
A forma como Lucifer o poe em um desafio melhor ainda...
e poxa... fiquei muito triste em ver Liza perdendo a familia. pensei que a historia dela encontraria a dele de outra forma. Ela ainda "voltará"?
Estou na torcida por Profany! E sua busca pela Espada!
Admito que gosto muito desse capítulo, e que bom que toda a carga dramática que quis passar ficou bem entendida.
Essas cenas em si eu baseei num arco da série clássica do Profany...
Liza Thompson ainda aparece sim. Ela, junto com o Noriel foram o "ka-tet" de Profany e o acompanharão em sua busca. Daí teremos representantes das duas raças, um nefilim e uma humana, para ajudar, ou atrapalhar, nosso herói.
Muito obrigado pela leitura e pelo comentário!!
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